Um dia, um amigo e grande escalador falou que eu tinha “escalada no sangue”. Imediatamente, senti um certo calor subindo pelo meu corpo, daqueles que a gente sente quando um grande elogio é dirigido a você. Se alguém tivesse olhando para mim na hora, certamente teria visto um rosto iluminado e provavelmente enrubescido de felicidade. Identifiquei-me prontamente com essas palavras e fiquei saboreando-as por um momento. Não discutimos muito sobre seu significado, pois ambos sentíamos a escalada em nossas veias e sabíamos que palavras não fariam jus a esse sentimento. Continuamos bebendo cerveja e jogando conversa fora. Alguns meses depois desse primeiro contato com essa expressão, me deparei com outra expressão que traduz mais ou menos a mesma coisa. Foi uma frase que saiu no filme “The Wall”, com Serginho Tartari e Daniel Bonella: “a escalada, para muitos, é um esporte de louco. Para outros, um esporte de final de semana. E para poucos, um estilo de vida”.
Mas falar sobre o que é ter a “escalada no sangue” não é uma tarefa fácil e certamente será um desafio tentar traduzir em palavras um sentimento tão profundo, mas… mão no magnésio e vamos embora.
Comecei a escalar tarde, aos 21 anos, mas acho que sempre fui escaladora. Por isso, assim que comecei a escalar, me viciei. Sim, tenho que confessar que, ainda hoje (11 anos depois desse início), sou viciada em escalada. Me atirava nas pedras, nas vias sem pensar em conseqüências e fui aprendendo aos poucos como utilizar todo o equipamento disponível e a realizar os procedimentos quase que adequadamente. Com uma grande disponibilidade de tempo, escalava quase que diariamente.
Depois de 11 anos me atirando em diversos tipos de via, vejo que a escalada faz parte de quem eu sou e de como eu me defino. Tudo em minha vida, atualmente, gira em torno de montanhas, vias, escaladas e parceiros de aventuras. E vejo que ter e sentir a escalada nas veias vai além do grau que escalamos, quantas vias fizemos, com que frequência escalamos, quanta força temos no braço ou quão bom é nosso equilíbrio. Isso tudo faz parte do lado objetivo de escalar e que, na realidade, é facilmente ensinada e absorvida. É a parte mental, filosófica e espiritual da escalada que juntas formam a base de ter ou não a “escalada no sangue”. Ter a “escalada no sangue” é amar o esporte, mas não se contentar em apenas faze-lo. É fazer da “escalada” um estilo de vida e abraçar com vontade e determinação as lições que tiramos de cada dia nas montanhas e atingir um equilíbrio espiritual que vem apenas com esse estilo de vida tão único. É saber que sua personalidade é grandemente definida como: “sou escalador/a” e ponto. E que se, por algum motivo, uma pequena parte disso é tirada deles, seria como arrancar uma parte vital de seu corpo, de sua alma.
Ter “escalada no sangue” é nunca se contentar com pouco. É ter o desejo de ir além, de se arriscar, de desafiar seus limites. É estar, literalmente, suscetível a grandes quedas e a recompensas incríveis e indescritíveis. É fazer a caminhada e chegar na base de uma parede, olhar para cima e se sentir pequeno, quase que impotente frente a grandiosidade da montanha. É sentir um frio imenso na barriga ao olhar a via, mas mesmo assim dar o primeiro passo para entrar na dança da verticalidade da escalada. Para aqueles que têm a escalada correndo em suas veias, estar na frente de uma cordada é um método de meditação.
Não existe outro lugar, hora ou atividade que estimule uma maior concentração ou um maior desligamento dos problemas e do mundo ao redor. Ignorando a fala do parceiro apreensivo, o escalador coloca a mente em outra dimensão e o foco se volta para a complexidade do momento: controlar a respiração, movimentos, equilíbrio e estado mental para passar um lance mais complicado… nada no mundo mais existe, apenas a dança vertical.
A realidade das palavras vindo de baixo e da situação só atinge o escalador depois da liberação da adrenalina através de um grito, expiração profunda ou risos descontrolados após ter finalizado aquele movimento desafiador. É assim que construímos nossa personalidade, felicidade e ficamos mais perto de nos tornarmos seres completos. É se sentir em casa nas montanhas, como em nenhum outro lugar do mundo e amar o sentimento de paz e tranquilidade que vem com o “estar e escalar” montanhas. Sentir a “escalada no sangue” é ter as montanhas na mente, no coração e na alma; sabendo que apenas escalando você tem a sensação de liberdade total, de segurança e acima de tudo de plenitude absoluta.
Por Kika Bradford